Resolvemos que dia 24/09/2020 seria o dia para tentarmos, ao menos, ver alguns membros de nossa família. Pela lógica, as pessoas teriam de, minimamente, ter o mesmo comportamento que o nosso. Escolhemos, então, minha sogra que é uma querida do meu coração por tudo o que já fez e faz por sua filha, por sua neta e por mim.
É claro que criamos um protocolo, e era um protocolo bem rígido, para que pudéssemos chegar à casa de minha sogra e conseguíssemos ter o mínimo de confiança uns nos outros. Minha sogra também não saiu há seis meses. Meu cunhado não, ele faz parte daquelas pessoas que conseguem o improvável nas situações adversas e teve de sair, pois arrumou uma namorada. Então, a estratégia era a seguinte - ele deveria ficar 15 dias em casa para que pudéssemos arriscar. E assim foi feito.
Finalmente, chegou o dia. Malas prontas, todo o equipamento necessário (máscaras, álcool, etc) para uma viagem de 5 minutos de carro. Entramos rapidamente no carro e vimos como as pessoas nas ruas têm lidado com a pandemia. Aqui em Vila Isabel (RJ), algumas pessoas estão mantendo o distanciamento social, mas os trabalhadores que são obrigados a vir servir a comunidade já tratam a doença como extinta e muitas pessoas também entraram na onda. Vi cotovelos protegidos por máscara, narizes pra fora, barbas protegidas; mas também vi pessoas preocupadas em se manter distantes umas das outras. No fundo, pensando agora, o resultado foi que metade das pessoas estava protegida e a outra metade cometia algum erro ou simplesmente não se importava mais.
Chegamos à casa de minha sogra e começamos a nova etapa do plano. Enquanto minha esposa e filha iam tomar um banho completo, eu e minha sogra tentávamos colocar as coisas pra dentro de casa - uma mochila e duas malas. Tudo ensacado e lacrado. E eu esperando ser liberado para entrar e fazer a minha própria higienização. Momento um tanto tenso, pois, vale lembrar, estávamos a seis meses em quarentena total com mínimo contato com outras pessoas.
Após a minha higienização, pude ver o quão sinistro é o isolamento em si. Seis meses convivendo somente com minha esposa e filha foram marcantes para todos, pois vimos o quanto as pessoas queridas são importantes para nós. Minha esposa chorava de felicidade nos braços de sua mãe, minha filha era um misto de felicidade e ansiedade pois poderia brincar com outras pessoas que não minha esposa e eu.
Fiquei realmente feliz com o que vi. Confesso. Todos estavam naquele momento sentindo um misto de felicidade e paz, pois nós estamos protegendo a nós mesmos e todos os desconhecidos que poderiam ser contaminados por um comportamento imprudente de nossa parte.
Talvez, algo que precisamos entender de uma vez o quanto antes é que o ser humano não é um "ser social", mas um ser comunitário. Pelo menos, no Brasil. Vou tentar explicar esse pensamento com os últimos acontecimentos nisso que, numa hipótese longínqua, será lido como uma crônica.
A sociedade brasileira não pode ser chamada de sociedade em nenhuma das definições clássicas do termo, infelizmente. A nossa noção macro de cidadania é golpeada sem dó exatamente pela classe econômica que deveria ajudar em sua definição (classe média).
Assim, para o brasileiro médio, ser um cidadão é estar acima das leis ou acima do status intelectual da maioria da população. Então, se a maioria da população tem somente o Ensino Fundamental, o brasileiro que passa dessa barreira e termina o médio vira uma espécie de super-sayajin de Dragon Ball. Se termina a Universidade, vira um super-sayajin 2. Mas olhem a imagem abaixo:
A diferença entre as concepções artísticas seria um choque elétrico e um arrepio? Na saga de Dragon Ball, a diferença é sutil e serve para que o filho do Goku derrote um dos personagens mais discriminatórios de toda a saga, mas não faz com que esse mesmo personagem se sinta superior. Digressões à parte, o que temos é que não há, para uma pessoa que não conheça DBZ, diferenças importantes entre o primeiro e o segundo estágio. Da mesma forma, não DEVERIA haver diferenciação entre os membros de uma sociedade que se diz igualitária, ou seja, o engenheiro não é diferente do gari.
Eu tenho uma reação grosseira ante essa questão do status de diferenciação do brasileiro. Lembro-me de, há muito, ser apresentado a um medalhão da minha área e ele resolveu que seria legal para o próprio ego humilhar aquele jovem na sua frente. Após tentar me colocar pra baixo, teve de ouvir uma resposta imediata - "Me conta, você parou de respirar, comer, mijar ou cagar? É porque eu só reconheço real superioridade se o humano conseguir um desses feitos."
Apesar de notoriamente deselegante, a pergunta revela que, numa sociedade, todos devem ser vistos num primeiro momento como iguais em direitos e deveres. Pode parecer uma enorme digressão, mas não é. Alguns estudiosos apontam que a "sociedade brasileira", desde sua formação, se baseia numa mentira (ou várias). Mas a questão, ao menos pra mim, é mais logica - se a sociedade brasileira se baseia numa mentira, qual é a verdade?
Você se identifica com essa imagem? |
Em busca de um caminho para a verdade, devemos nos perguntar - há realmente algo que nos une? E incrivelmente a resposta é sim, mas essa característica que nos une não é uma característica social, mas comunitária. Compartilhamos uma mesma língua, fato. Entretanto, compartilhar uma mesma língua não nos faz ver o outro como um igual. Só vemos o outro como um igual quando conseguimos compartilhar uma ideia do que seja ser pertencente de um todo.
A noção de todo do brasileiro ainda está circunscrita ao ambiente familiar/tribal. É notável ver isso acontecendo. As pessoas só acreditam que algo realmente está acontecendo se ocorre dentro de sua comunidade mais próxima. Mas esse fenômeno é antigo, pois naturalizamos a morte, a corrupção, a violência estatal contra os mais carentes. Naturalizamos, enfim, tudo aquilo que não nos afete diretamente.
Isso permite, por exemplo, que verdadeiros crimes que lesam a pátria sejam rapidamente deixados de lado. Chacinas recebem eufemismos, pois se tratam de crimes que prejudicam a sociedade como um todo, mas se não houve a formação de um corpus social, como poderíamos valorar esse crime. Porém, se o crime lesa um grupo que vive no mesmo ambiente geográfico, o pensamento comum almeja uma punição exemplar. Não se pensa na recuperação do criminoso, mas realmente de uma vingança e isso, de quando em quando, pode virar uma causa nacional desde que se construa uma narrativa em que se convença (pois não é necessário provar) de que as comunidades que envolvem o território brasileiro foram lesadas.
Com essa imagem você se identifica? Pois saiba que a imagem anterior trata do povo mexicano. A imagem logo acima é brasileira. |
Ou seja, os crimes que verdadeiramente lesam a nação - desvios de recursos, falsificação em obras, venda de recursos garantidos por lei a interesses estrangeiros, governabilidade dividida com o crime organizado em diversas áreas - são considerados menores na mente das pessoas na maioria dos casos. A única exceção ocorre quando uma narrativa emerge, mostrando como esses crimes podem ameaçar as comunidades. Devemos lembrar sempre que uma comunidade se organiza na abstração chamada família e em sua ampliação. Enquanto que o pensamento de uma sociedade envolve outras questões como, por exemplo, a distinção entre bem público e bem particular. Coisas que nunca se resolveram no pensamento dos nascidos na antiga colônia americana de Portugal.
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