segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Curtindo a vida adoidado

Seis meses preso, seis meses evitando o contato com outras pessoas, seis meses dentro de casa. Seis longos meses vendo a população da cidade do Rio de Janeiro ter um dos piores comportamentos da pandemia de COVID-19. Chegou a hora de tentar sair.

Resolvemos que dia 24/09/2020 seria o dia para tentarmos, ao menos, ver alguns membros de nossa família. Pela lógica, as pessoas teriam de, minimamente, ter o mesmo comportamento que o nosso. Escolhemos, então, minha sogra que é uma querida do meu coração por tudo o que já fez e faz por sua filha, por sua neta e por mim.

É claro que criamos um protocolo, e era um protocolo bem rígido, para que pudéssemos chegar à casa de minha sogra e conseguíssemos ter o mínimo de confiança uns nos outros. Minha sogra também não saiu há seis meses. Meu cunhado não, ele faz parte daquelas pessoas que conseguem o improvável nas situações adversas e teve de sair, pois arrumou uma namorada. Então, a estratégia era a seguinte - ele deveria ficar 15 dias em casa para que pudéssemos arriscar. E assim foi feito.

Finalmente, chegou o dia. Malas prontas, todo o equipamento necessário (máscaras, álcool, etc) para uma viagem de 5 minutos de carro. Entramos rapidamente no carro e vimos como as pessoas nas ruas têm lidado com a pandemia. Aqui em Vila Isabel (RJ), algumas pessoas estão mantendo o distanciamento social, mas os trabalhadores que são obrigados a vir servir a comunidade já tratam a doença como extinta e muitas pessoas também entraram na onda. Vi cotovelos protegidos por máscara, narizes pra fora, barbas protegidas; mas também vi pessoas preocupadas em se manter distantes umas das outras. No fundo, pensando agora, o resultado foi que metade das pessoas estava protegida e a outra metade cometia algum erro ou simplesmente não se importava mais.

Chegamos à casa de minha sogra e começamos a nova etapa do plano. Enquanto minha esposa e filha iam tomar um banho completo, eu e minha sogra tentávamos colocar as coisas pra dentro de casa - uma mochila e duas malas. Tudo ensacado e lacrado. E eu esperando ser liberado para entrar e fazer a minha própria higienização. Momento um tanto tenso, pois, vale lembrar, estávamos a seis meses em quarentena total com mínimo contato com outras pessoas.

Após a minha higienização, pude ver o quão sinistro é o isolamento em si. Seis meses convivendo somente com minha esposa e filha foram marcantes para todos, pois vimos o quanto as pessoas queridas são importantes para nós. Minha esposa chorava de felicidade nos braços de sua mãe, minha filha era um misto de felicidade e ansiedade pois poderia brincar com outras pessoas que não minha esposa e eu. 

Fiquei realmente feliz com o que vi. Confesso. Todos estavam naquele momento sentindo um misto de felicidade e paz, pois nós estamos protegendo a nós mesmos e todos os desconhecidos que poderiam ser contaminados por um comportamento imprudente de nossa parte. 


 

Talvez, algo que precisamos entender de uma vez o quanto antes é que o ser humano não é um "ser social", mas um ser comunitário. Pelo menos, no Brasil. Vou tentar explicar esse pensamento com os últimos acontecimentos nisso que, numa hipótese longínqua, será lido como uma crônica.

A sociedade brasileira não pode ser chamada de sociedade em nenhuma das definições clássicas do termo, infelizmente. A nossa noção macro de cidadania é golpeada sem dó exatamente pela classe econômica que deveria ajudar em sua definição (classe média).

Assim, para o brasileiro médio, ser um cidadão é estar acima das leis ou acima do status intelectual da maioria da população. Então, se a maioria da população tem somente o Ensino Fundamental, o brasileiro que passa dessa barreira e termina o médio vira uma espécie de super-sayajin de Dragon Ball. Se termina a Universidade, vira um super-sayajin 2. Mas olhem a imagem abaixo:


A diferença entre as concepções artísticas seria um choque elétrico e um arrepio? Na saga de Dragon Ball, a diferença é sutil e serve para que o filho do Goku derrote um dos personagens mais discriminatórios de toda a saga, mas não faz com que esse mesmo personagem se sinta superior. Digressões à parte, o que temos é que não há, para uma pessoa que não conheça DBZ, diferenças importantes entre o primeiro e o segundo estágio. Da mesma forma, não DEVERIA haver diferenciação entre os membros de uma sociedade que se diz igualitária, ou seja, o engenheiro não é diferente do gari.

Eu tenho uma reação grosseira ante essa questão do status de diferenciação do brasileiro. Lembro-me de, há muito, ser apresentado a um medalhão da minha área e ele resolveu que seria legal para o próprio ego humilhar aquele jovem na sua frente. Após tentar me colocar pra baixo, teve de ouvir uma resposta imediata - "Me conta, você parou de respirar, comer, mijar ou cagar? É porque eu só reconheço real superioridade se o humano conseguir um desses feitos."

Apesar de notoriamente deselegante, a pergunta revela que, numa sociedade, todos devem ser vistos num primeiro momento como iguais em direitos e deveres. Pode parecer uma enorme digressão, mas não é. Alguns estudiosos apontam que a "sociedade brasileira", desde sua formação, se baseia numa mentira (ou várias). Mas a questão, ao menos pra mim, é mais logica - se a sociedade brasileira se baseia numa mentira, qual é a verdade? 

Você se identifica com essa imagem?

Em busca de um caminho para a verdade, devemos nos perguntar - há realmente algo que nos une? E incrivelmente a resposta é sim, mas essa característica que nos une não é uma característica social, mas comunitária. Compartilhamos uma mesma língua, fato. Entretanto, compartilhar uma mesma língua não nos faz ver o outro como um igual. Só vemos o outro como um igual quando conseguimos compartilhar uma ideia do que seja ser pertencente de um todo. 

A noção de todo do brasileiro ainda está circunscrita ao ambiente familiar/tribal. É notável ver isso acontecendo. As pessoas só acreditam que algo realmente está acontecendo se ocorre dentro de sua comunidade mais próxima. Mas esse fenômeno é antigo, pois naturalizamos a morte, a corrupção, a violência estatal contra os mais carentes. Naturalizamos, enfim, tudo aquilo que não nos afete diretamente. 

Isso permite, por exemplo, que verdadeiros crimes que lesam a pátria sejam rapidamente deixados de lado. Chacinas recebem eufemismos, pois se tratam de crimes que prejudicam a sociedade como um todo, mas se não houve a formação de um corpus social, como poderíamos valorar esse crime. Porém, se o crime lesa um grupo que vive no mesmo ambiente geográfico, o pensamento comum almeja uma punição exemplar. Não se pensa na recuperação do criminoso, mas realmente de uma vingança e isso, de quando em quando, pode virar uma causa nacional desde que se construa uma narrativa em que se convença (pois não é necessário provar) de que as comunidades que envolvem o território brasileiro foram lesadas.

Com essa imagem você se identifica? Pois saiba que a imagem anterior trata do povo mexicano. A imagem logo acima é brasileira.

Ou seja, os crimes que verdadeiramente lesam a nação - desvios de recursos, falsificação em obras, venda de recursos garantidos por lei a interesses estrangeiros, governabilidade dividida com o crime organizado em diversas áreas - são considerados menores na mente das pessoas na maioria dos casos. A única exceção ocorre quando uma narrativa emerge, mostrando como esses crimes podem ameaçar as comunidades. Devemos lembrar sempre que uma comunidade se organiza na abstração chamada família e em sua ampliação. Enquanto que o pensamento de uma sociedade envolve outras questões como, por exemplo, a distinção entre bem público e bem particular. Coisas que nunca se resolveram no pensamento dos nascidos na antiga colônia americana de Portugal. 

Não temos algo a dizer sobre o Brasil porque ainda o Brasil não foi fundado, simples assim. Nossas bases culturais possuem íntimas relações com culturas alheias ao brasileiro como um pré-requisito de seu próprio cotidiano. Somos africanos, ameríndios, americanos, alemães e tudo o mais, menos brasileiros. Sempre que estudamos algo que seja, talvez, uma representação nacional, nos deixamos levar por sua origem estrangeira ou pelos estrangeirismos que nela se instauram. Esse fenômeno revela nossa relação com os tipos culturais mais estranhos a nós e como esses nos moldam em algum momento, mas também revela a falta de precisão de acertar um momento específico em que nos tornamos brasileiros.

Isso ocorre até hoje. Isso é triste. Sempre seremos o país do futuro? 



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