quinta-feira, 6 de abril de 2023

A tecnologia nossa de cada dia

 

A dependência atual das pessoas à tecnologia, conforme afirma Bauman em O mal-estar da pós-modernidade, revela a dependência da noção de indivíduo ao mercado. Nós não vivemos mais com o intuito tão somente de buscar algum conforto dentro de um sistema que nos obriga a entregar nossas habilidades para o mercado. Somos, agora, o produto mais importante dentro do sistema ainda chamado de capitalista. Somos vendidos e comprados a todo o instante por empresas e empreendedores... Como? Vamos pensar...

Se, para Descartes, a existência individual se dá através da dúvida (Dubito ergo sum); hoje, temos que a experiência de individuação (Jung) só é garantida ou reconhecida quando a pessoa mercantiliza a si mesma. Não se trata mais da ilusão do mercado, mas da ilusão do espetáculo (Deboard).

É preciso, então, explicar como isso acontece. Cada época, cada era, cada momento histórico nos transmite os valores essenciais para a emergência do indivíduo enquanto valor para a humanidade. No olhar atual, poderíamos interpretar como formas de aparecer para a história, mas, na realidade, são formas de ascender frente ao obituário (Benjamin) que é essa mesma história. Ou seja, a narrativa histórica é a narrativa de apagamento de muitos para o reconhecimento de poucos. Nada de novo no front, correto? ERRADO! 

Se nossa proposta é verdadeira, só podemos admiti-la se também considerarmos que a geração posterior é quem marca e reconhece os valores de seus antecessores. Ao reconhecer seus valores e apresentar seus notáveis, a geração presente mostra o desafio a ser vencido. Não adianta imitar o que já foi, cabe criar uma valoração nova (na maioria inconsciente) para ser reconhecida numa próxima geração.

A geração atual (Deboard) é a geração do espetáculo. Tudo que gira em torno da cultura tem de passar pelo show. A cultura ocidental já teve como centro o livro (séculos XIX e XX) - em que esse objeto era entendido como algo segregador, apesar de cada vez mais disponível e, portanto, mais barato em termos de troca capitalista. Porém, ao longo do século XX, principalmente a partir dos anos 1930, um processo se inicia. É quando os meios de comunicação começam a ser entendidos como meios massivos de comunicação. 

Um rádio, mais caro do que um livro, dá acesso a várias histórias. O livro, em tese, dá acesso a mesma história. Enquanto o livro tem o potencial de analisar outros objetos culturais - um por vez ou vários de maneira comparativa - o rádio dá acesso a várias análises (mesmo que contraditórias) a um grande público.



O rádio coloca o conhecimento num dilema. O livro passa, em tese, por um corpo editorial e por um corpo crítico que o desafia constantemente. O rádio não passa pelo mesmo crivo devido a sua velocidade de informações. Virtualmente, qualquer um pode dizer o que quiser num programa de rádio sem maiores consequências. Um livro pode ser desacreditado, um rádio, não. Entendam, não falo de pessoas aqui, mas dos objetos culturais. 

A partir dos anos 1950 a situação se torna ainda mais interessante...


Esta coisa ao lado traz o cinema pra sua casa. Esta coisa ao lado é o pai daquilo que você, jovem dinâmico, liga pra usar o seu joguinho. Esta coisa adapta os programas de rádio, em que você tem de usar seu repertório para compor as imagens narradas, em programas em que você não precisa mais fazer nada para compor a imagem, somente interpretá-las. Isso é uma Televisão.

Esse objeto é tão revolucionário que até hoje há uma espécie de embaraço ao se analisar sua real importância para a cultura ocidental. McLuhan chamava a atenção para isso, mas foi ignorado pelo bem do progresso. Basicamente, a televisão é um rádio com anabolizantes em que transforma o que é dito em algo de menor importância. Veja bem, a imagem fascina e a TV é o circo em sua casa. A família se reúne para celebrar os notáveis de sua própria cultura, a TV é colocada no centro das casas, num local em que, durante séculos, era separado para cultuar sua religião e agora serve de culto para outros seres que, por algum motivo, aparecem de forma recorrente lá. A televisão não é o objeto reprodutor de ideias (esse é o rádio), a TV é o reprodutor de imagens, seja no sentido pagão, seja no sentido cristão. O que se deve entender, portanto, é que a imagem se torna uma virtude e a forma mais barata de imagem é chamada de aparência.

Enquanto a TV e o rádio são virtualmente congregadores, a virada do XX para o XXI começa a produzir objetos culturais mais paradoxais. O computador e o celular, apesar de aparentemente congregadores, são objetos individuais. A experiência de se utilizar um desses aparelhos (que, na realidade, são o mesmo, sendo utilizado um como prolongamento do outros) afasta você da sua "congregação" do rádio e da TV, colocando-se numa ilha de si mesmo. As experiências, na prática, se tornam completamente individuais. Interações virtuais são, conforme Bauman, relações especulares. Cumpre discordar...

A TV é, de certa forma, o circo em sua casa. A dinâmica do circo, grosso modo, é a progressão de emoções até o evento principal que deve ser de tirar o fôlego - a organização da rádio é um sem número de circos, fragmentando a atenção do espectador em meio a espetáculos. A TV já se organiza como um espetáculo único - um dia de programação é um dia de circo, com o intuito de preservar o público em sua grade, com altos e baixos, até aquilo que chamamos de horário nobre - o ápice da programação. 

O computador e o celular são objetos culturais diferentes. Primeiramente, ambos ficam à margem do espaço doméstico, impedindo a realização de uma congregação. Enquanto o computador é colocado no espaço íntimo do quarto (nas casas de classe média), o celular é usado de forma ainda mais íntima, próximo ao corpo e aos olhos. É claro que isso se dá por conta dos tamanhos e formas com as quais utilizamos o aparelho, mas, ao longo dos anos, isso também reflete na cultura.

Ao utilizarmos esses objetos de maneira íntima, individual, temos a ideia de que nossa experiência com esse objeto é única e ímpar. Ledo engano se olharmos em perspectiva, mas o que importa a perspectiva, não é mesmo? A função desses objetos é, em grande escalar, dar a aparência de experiência única para o que já era feito na TV e no rádio enquanto objetos culturais. A "congregação" começa a se revelar enquanto culto.

Congregação prescinde união, culto, no entanto, é iniciação individual numa comunidade discriminatória. Você realmente acha que qualquer comunidade é inclusiva? Meu querido leitor, caso esteja lendo isso, saiba que você mesmo faz parte de uma micro comunidade que discrimina outras comunidades de alguma forma. É algo humano. Ao nos inserirmos numa comunidade, utilizando-a no nosso processo reflexivo de identidade, discriminamos outras, tornando-as, em nossa avaliação, menores do que aquela que escolhemos. 

Dessa feita, vivemos hoje, não como analisou Bourdieu em alguns anos, mas como Deboard afirma. Queremos espetacularizar nossa existência, queremos os views, mas não queremos que outros façam o mesmo. Nossa busca por reconhecimento e aceitação não se dá mais por admiração a quem está ao nosso lado, mas admiração pelo espetáculo em si. Queremos a aparência, mas não queremos o conhecimento. Assim, as frases se tornam um amontoado de autoafirmações em monólogos acompanhados de um outro - seja virtual, seja real. 


A aparência aqui é subterfúgio, servindo para esconder o verdadeiro processo de individuação. Precisamos aparentar felicidade sem saber o que isso realmente é. Precisamos tornar nossa vida um espetáculo para fingir uma relevância que não temos. Isso é hoje o mais real mercado de trocas que temos. Trocamos esse fenômeno pelo quê? Quem compra, quem vende? 

Não preciso responder a essas perguntas, mas essa é talvez mais uma das inúmeras falhas de nossa sociedade.



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